
A regularização de imóveis que passaram por diversas sucessões familiares, sem a devida formalização dos inventários, é um dos maiores desafios do Direito Imobiliário e Sucessório brasileiro. A acumulação de óbitos sem a abertura dos respectivos processos de inventário cria uma cadeia de titularidades informais, tornando o imóvel "irregular" perante o Registro de Imóveis e os demais cadastros, como a Municipalidade. Diante desse cenário, muitos herdeiros buscam soluções alternativas, como a Usucapião, na esperança de simplificar o processo e reduzir custos, levantando a crucial questão: é possível substituir múltiplos inventários pela Usucapião para regularizar um bem de família?
A regra geral do Direito Sucessório é clara: para cada evento morte que implique a transmissão de bens, é indispensável a abertura de um INVENTÁRIO, seja ele judicial ou extrajudicial. Este procedimento formaliza e regulariza a transmissão da herança aos sucessores, conferindo-lhes a titularidade legal dos bens deixados pelo falecido. O princípio da saisine, previsto no Código Civil (art. 1.784), estabelece que a posse e a propriedade da herança transmitem-se aos herdeiros no momento da morte, mas essa transmissão necessita ser formalizada e individualizada por meio do inventário para que os bens possam ser livremente dispostos ou registrados em nome dos novos proprietários.
Embora um único processo de inventário (judicial ou extrajudicial) possa, em tese, abarcar a transmissão de bens decorrentes de várias sucessões/várias mortes, por meio de sobrepartilha ou inventário conjunto, é fundamental compreender que a cobrança de impostos e emolumentos cartorários incidirá sobre cada transmissão. O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), por exemplo, tem como fato gerador a transmissão da propriedade por herança, sendo devido para cada falecido e seus respectivos herdeiros. Assim, mesmo que a tramitação seja unificada, os custos tributários e registrais são calculados individualmente para cada elo da cadeia sucessória, o que pode tornar o processo bem oneroso e complexo. Cabe anotar que muitas vezes a tributação vem ainda mais voraz já que acompanha de multa pelo atraso da regularização.
Diante da complexidade e dos custos dos inventários sucessivos, a Usucapião surge como uma aparente alternativa. Contudo, a aplicação da Usucapião em bens de herança é um tema delicado, que gera divergência e cautela no meio jurídico. Tradicionalmente, muitos tribunais brasileiros não admitem o manejo da Usucapião por um herdeiro contra os demais co-herdeiros, sob o argumento de que a herança é um condomínio pro indiviso e a posse de um herdeiro seria mera tolerância ou posse em nome da coletividade, descaracterizando o "animus domini" exclusivo necessário à Usucapião. Expressamente muitas decisões afirma categoricamente que a via da Usucapião é inadequada. Recente decisão do TJMG exemplifica:
"TJMG. 61352454420158130024. J. em: 01/10/2024. APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA - IMÓVEL OBJETO DE HERANÇA - AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE - AUSÊNCIA DE INVENTÁRIO - PARTILHA NÃO EFETIVADA - PRINCÍPIO DA SAISINE - FALTA DE INTERESSE DE AGIR - VIA INADEQUADA - EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO - APELOS DESPROVIDOS - DISPOSITIVO ALTERADO DE OFÍCIO A usucapião é meio pelo qual se busca o reconhecimento do domínio por aquisição originária da propriedade em razão do tempo de posse com o ânimo de dono, já o direito de saisine já faz dono o sucessor, por aquisição derivada, bastando, tão somente, a regularização do título. A ação de usucapião não pode ser utilizada como meio indireto para a transmissão da posse e da propriedade de bem imóvel objeto de herança, não servindo, portanto, para regularizar título de domínio, malgrado eventual anuência dos demais co-herdeiros para esse fim. O reconhecimento da usucapião entre herdeiros é possível, desde que já tenha sido realizado o inventário dos bens. Não sendo este o caso, o processo deve ser extinto sem julgamento de mérito, em razão da inadequação da via eleita ao reconhecimento da propriedade. Apelos desprovidos. Dispositivo alterado de ofício."
Não obstante essa visão mais restritiva, há um importante precedente da Corte Superior que tem modificado o entendimento sobre o tema. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já admitiu a possibilidade de um herdeiro usucapir imóvel objeto de herança, desde que comprove a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição do bem, com "animus domini" (intenção de ser dono) manifesto e inequívoco, pelo prazo legal exigido para a modalidade de Usucapião aplicável. Tal decisão representa um inegável AVANÇO, mas impõe ao herdeiro um ônus probatório substancialmente elevado, exigindo a demonstração de que sua posse não era mera tolerância, mas sim uma posse qualificada e exclusiva, em detrimento dos demais co-herdeiros. Nesse sentido - curiosamente - decisão do mesmo Tribunal mineiro, ainda mais recente:
"TJMG. 50009493520228130549. J. em: 29/01/2025. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. IMÓVEL OBJETO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO POR UM DOS HERDEIROS. SENTENÇA REFORMADA. I. CASO EM EXAME Apelação cível interposta contra sentença que extinguiu, sem resolução de mérito, a ação de usucapião urbano extraordinário proposta pelo apelante, sob o fundamento de falta de interesse processual devido à inadequação da via eleita, nos termos do art . 485, VI, do CPC. O apelante alega posse mansa, pacífica, ininterrupta e de boa-fé do imóvel há mais de 64 anos, desde a data de sua aquisição por seu genitor, com manutenção exclusiva dessa posse após o falecimento dos genitores, e busca o reconhecimento da usucapião ou, alternativamente, a oportunidade de inclusão de herdeiros no polo passivo da ação. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO Há duas questões em discussão: (i) Definir a possibilidade de reconhecimento de usucapião de imóvel objeto de herança por um dos herdeiros, mesmo sem a realização de inventário. (ii) Estabelecer se o apelante comprovou os requisitos necessários à usucapião extraordinária nos termos do art. 1.238 do Código Civil. III. RAZÕES DE DECIDIR. O Superior Tribunal de Justiça reconhece que é possível a usucapião de imóvel objeto de herança por um herdeiro que exerce posse exclusiva, desde que comprovados os requisitos legais, sendo desnecessária a conclusão do inventário. A extinção do processo por inadequação da via eleita, fundamentada na inexistência de inventário, contraria a jurisprudência consolidada, que legitima o pleito de usucapião para regularização fundiária. A posse exclusiva do imóvel pelo apelante é corroborada por atas notariais com declarações de vizinhos e ausência de oposição ou ações possessórias e petitórias ajuizadas pelos demais herdeiros, evidenciando a posse mansa, pacífica e ininterrupta cum animo domini por período superior a 15 anos. A manutenção das despesas relacionada s ao imóvel (água, luz, IPTU) pelo apelante reforça a sua intenção de exercer a propriedade sobre o bem, atendendo ao disposto no art. 1.238 do Código Civil. A transmissão do imóvel aos herdeiros por sucessão causa mortis não exclui a possibilidade de usucapião, especialmente em contextos que inviabilizam a regularização por inventário, conforme destacado na doutrina e precedentes do STJ. IV . DISPOSITIVO E TESE Recurso provido. Tese de julgamento: É possível a usucapião extraordinária de imóvel objeto de herança por herdeiro que exerce posse exclusiva, ainda que não formalizado o inventário, desde que comprovados os requisitos legais para a aquisição originária da propriedade".
Para que um herdeiro possa pleitear a Usucapião de um bem da herança, é imprescindível que sua posse sobre o imóvel seja exercida de forma exclusiva, sem qualquer oposição dos demais herdeiros, e com a inequívoca intenção de ser o único proprietário. Isso significa que o herdeiro deve ter agido como se fosse o único dono, realizando benfeitorias, pagando impostos e despesas do imóvel, e excluindo os demais da posse, de forma pública e notória, pelo período de tempo exigido pela lei (que varia de 5 a 15 anos, dependendo da modalidade de Usucapião). A ausência de qualquer um desses requisitos pode inviabilizar a pretensão e resultar na improcedência da ação.
A escolha entre a Usucapião e a abertura dos inventários múltiplos é uma decisão estratégica que deve ser tomada após uma análise aprofundada de cada caso concreto. Enquanto os inventários garantem a segurança jurídica e a regularidade plena da cadeia sucessória, a Usucapião, quando cabível, pode representar uma via mais célere e, em alguns casos, menos onerosa, para a regularização da propriedade. Contudo, a Usucapião é um processo judicial complexo, que exige prova robusta e não está isenta de riscos, especialmente quando há outros herdeiros que possam contestar a posse exclusiva.
Em face da complexidade das normas sucessórias, tributárias e registrais, e da divergência jurisprudencial sobre a Usucapião de bens de herança - principalmente na via extrajudicial -, é imprescindível consultar um Advogado Especialista em Direito Imobiliário e Sucessório. Somente um profissional qualificado poderá analisar a documentação existente, a situação fática da posse, a cadeia sucessória e as particularidades do imóvel para identificar a melhor estratégia de regularização, seja pela via do inventário, pela Usucapião, ou por uma combinação de ambos, garantindo a segurança jurídica e a proteção do patrimônio familiar.
