
A usucapião, como modo de aquisição da propriedade, é um instituto jurídico de grande relevância social e econômica. Contudo, uma dúvida recorrente paira sobre seus efeitos: o reconhecimento da usucapião tem o poder de "limpar" a situação jurídica do imóvel, excluindo eventuais gravames e ônus preexistentes em sua matrícula? A resposta, conforme consolidado entendimento jurisprudencial, é afirmativa, em virtude da natureza originária dessa forma de aquisição.
É fundamental compreender que a usucapião é um modo originário de aquisição da propriedade. Diferentemente da doação e da compra e venda (que são modos derivados, onde o novo proprietário recebe o bem com os ônus e bônus do antigo), na usucapião, o direito de propriedade nasce novo, sem qualquer vínculo ou conexão com o direito de propriedade anterior. A posse qualificada, exercida por determinado lapso temporal, faz surgir um novo domínio, extinguindo-se o antigo.
Em razão dessa natureza originária, a usucapião possui um efeito liberatório, também conhecido como "usucapio libertatis" ou efeito sanatório geral. Isso significa que o usucapiente adquire a propriedade livre e desembaraçada de quaisquer ônus, gravames, dívidas ou direitos reais que porventura recaíam sobre o imóvel antes do reconhecimento da usucapião. Se a propriedade anterior se extingue pela usucapião, tudo o que a gravava – e lhe era acessório – também se extinguirá.
Essa regra se aplica inclusive a obrigações de natureza propter rem, como os débitos condominiais e as penhoras incidentes sobre o bem. Embora a dívida condominial seja inerente à coisa e a ela se vincule, a aquisição originária pela usucapião prevalece. O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que, ao se extinguir o direito de propriedade anterior, ao qual o gravame estava atrelado, não há como prevalecer os ônus que pendiam sobre o bem. A responsabilidade do adquirente por débitos condominiais, prevista no artigo 1.345 do Código Civil, refere-se à aquisição derivada, não se aplicando à usucapião.
É fundamental, contudo, considerar as nuances da Usucapião Extrajudicial, conforme disciplinado pelo Provimento CNJ nº 149/2023. O Art. 411 estabelece que a mera existência de ônus real ou gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impede, por si só, o reconhecimento extrajudicial da usucapião. Todavia, se o titular desse direito impugnar o pedido, e não houver conciliação ou mediação frutífera conduzida pelo registrador, a via extrajudicial será obstada, exigindo a judicialização do pleito. Complementarmente, o Art. 418 esclarece que o reconhecimento extrajudicial da usucapião NÃO PROMOVE a extinção automática de restrições administrativas ou gravames judiciais regularmente inscritos. Nesses casos, caberá ao usucapiente formular pedido de cancelamento diretamente à autoridade competente que emitiu a ordem, embora entes públicos ou credores possam anuir expressamente à extinção dos gravames no próprio procedimento extrajudicial. Tais disposições sublinham a necessidade de uma análise minuciosa, ponderação e da atuação estratégica do Advogado para navegar por essas especificidades e garantir o pleno efeito liberatório da usucapião, mesmo em sede Extrajudicial.
Portanto, uma vez reconhecida a usucapião, a sentença judicial (na via judicial) ou o ato de registro da usucapião pelo oficial competente (na via extrajudicial) embasarão a averbação ou abertura de nova matrícula do imóvel. O efeito liberatório da usucapião, inerente à sua natureza originária, implica que a propriedade será, em regra, refletida livre de gravames anteriores, como hipotecas, usufrutos e servidões não aparentes, que são extintos. Contudo, a escolha da via para o reconhecimento da usucapião – judicial ou extrajudicial – exige uma ponderação estratégica, que o interessado deverá realizar em conjunto com seu Advogado, especialmente à luz das regras do Provimento CNJ nº 149/2023. Assim, a análise prévia da existência e da natureza dos gravames é crucial para que se decida qual a via processual mais adequada e eficaz para obter a propriedade plenamente desembaraçada.
Em suma, a usucapião tem o poder de "limpar" a situação jurídica de um imóvel, conferindo ao novo proprietário um domínio pleno e desimpedido. Essa característica reforça a importância do instituto como ferramenta de regularização fundiária e de segurança jurídica. Contudo, o processo de usucapião exige a comprovação rigorosa dos requisitos legais e a correta condução do procedimento, o que torna indispensável a atuação de um advogado especializado para garantir a efetividade desse efeito liberatório.
Por fim, importante decisão do STJ chancelando o efeito liberatório da Usucapião:
"STJ. REsp: 2051106/SP. J. em: 24/10/2023. RECURSO ESPECIAL. CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE. EFEITO LIBERATÓRIO. PENHORA. DÉBITO CONDOMINIAL. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. NÃO SUBSISTÊNCIA. (...) 2- O propósito recursal consiste em dizer se a aquisição originária da propriedade pela usucapião prevalece sobre o caráter "propter rem" do débito condominial de modo a autorizar a desconstituição de penhora incidente sobre o bem. 3- Em virtude dos efeitos ex tunc do reconhecimento judicial ou extrajudicial da usucapião, a titularidade do bem é concebida ao possuidor desde o momento em que satisfeitos todos os requisitos para a aquisição originária da propriedade. 4- A usucapião insere-se no rol dos modos originários de aquisição de propriedade, pois não há conexão entre o direito de propriedade que dela surge e o direito de propriedade antecedente. 5- Em razão do efeito liberatório, se a propriedade anterior se extingue pela usucapião, tudo o que gravava o bem - e lhe era acessório - também se extinguirá. Precedentes. 6- Não subsiste eventual penhora incidente sobre o bem objeto de usucapião, pois, extinguindo-se o direito de propriedade ao qual o gravame estava atrelado, não há como prevalecer os ônus que pendiam sobre o bem, ainda que destinados a garantir débito de natureza "propter rem". 7- Na hipótese dos autos, não merece reforma o acórdão recorrido, pois, revelando-se inconteste a consumação da usucapião, extinguiu-se o direito de propriedade anterior e, juntamente com ele, a penhora outrora realizada no âmbito da execução, em virtude da natureza originária da aquisição da propriedade, sendo certo, ainda, que os débitos condominiais executados são anteriores à própria posse dos embargantes. 8- Recurso especial não provido".
